quinta-feira, 20 de dezembro de 2012









Recebi um email via Nostradamo
Um judeu que nasceu em Notre-Dame (Paris)
Na noite da peste bubónica
Peremptoriamente dizendo que sim

Às grandes desgraças que sempre assolaram
Este planeta barricado neste sistema
Pois ele é o ser mais vivo
O ser mais inconformado do Universo

E por isso aspira, a ser outra coisa
Que não o que os seus irmãos aspiram
Para ele, por demais só há para alguns
Os da família primordial que empedra

O quasar das pequenas coisas incontidas
No sublevar das incontinências adormecidas
Na tremelga das gerações ensopadas
No software dos binários terminados

Numa teia de incomensurável pulsão
Onde orbitam escandalosas, todas
As prenunciações do mal
Num gráfico animado pela dor.

Januário
20-12-2012








segunda-feira, 17 de dezembro de 2012



O nosso Senhor Capitão

Augusto Casimiro







Escritor e militar português, Augusto Casimiro dos Santos nasceu a 11 de maio de 1889, em Amarante. Nessa localidade fez os seus estudos primários e liceais. Aos 16 anos, tendo escolhido a carreira militar, assentou praça noRegimento de Infantaria de Coimbra. Frequentou então estudos universitários em Coimbra e, depois, o Curso de Infantaria da Escola do Exército, de que saiu graduado em 1909. Cedo se revelou como poeta e cronista, estreando-se como autor em 1906 e iniciando a sua colaboração na imprensa periódica na década de 1910. Também por esta altura aderiu aos ideais republicanos.

Cumpriu os preceitos militares, encarando-os como uma forma nobre de servir a sua Pátria. Na sequência desta forma de pensar quando recebeu a incumbência militar de se deslocar a Flandres, com a patente de tenente, granjeou grande prestígio e respeito junto dos seus "companheiros de armas". A sua participação na Campanha da Flandres (1917-18), durante a Primeira Guerra Mundial, valeu-lhe várias condecorações (Cruz de Guerra, fourragère da Torre e Espada, Ordem de Cristo, medalha de Ouro de Bons Serviços, Military Cross, Legião de Honra, Ordem de Avis e Ordem de Santiago) e a promoção a capitão.

Após o termo da Grande Guerra, lecionou no Colégio Militar, sendo de seguida integrado como adjunto na campanha que visava a delimitação da fronteira entre Angola e o então Congo Belga, trabalhando sob a direcção de Norton de Matos, então Alto Comissário da República em Angola. Nesse período foi Governador do Distrito do Congo e Secretário Provincial e Governador interino de Angola (1923-1926). Este período de permanência em Angola, levou-o a escrever largamente sobre temática de carácter colonial.

Augusto Casimiro, ao ser deportado para Cabo Verde na sequência da sua participação na Revolta da Madeira em 1931, quando assumiu a direcção do jornal Notícias da Madeira, que era o órgão oficial dos revoltosos. Enquanto permaneceu em Cabo Verde passou a conhecer de forma mais personalizada a Literatura Cabo-verdiana, que pôde descrever e valorizar como uma nova realidade, juntando para sua cabal interpretação o que já se sabia. Permitiu assim perceber melhor como, na dialéctica contraditória e dolorosa da colonização e da luta anti-colonial, nasceu um encontro mais fraterno de povos e de culturas com base na língua portuguesa. Em 1930 afastou-se da Ditadura, por saber que estava comprometido o seu sonho civilizador em África e por aspirar a uma República democrática. Comprometeu a carreira, sofreu a prisão e o desterro, mas não transigiu.
Em 1930, Augusto Casimiro ainda procurou estabelecer uma ponte entre o regime republicano e a Ditadura Militar, com o apoio (ou pelo menos com o conhecimento) do Prof. Manuel Rodrigues, então ministro da Justiça. As ideias de Augusto Casimiro sobre as colónias tinham sido expressas em artigos publicados no Diário de Notícias e encontraram algum eco junto de elementos da ditadura como o próprio Ministro da Guerra da época, Namorado de Aguiar que, em privado teria mostrado concordância com as ideias expressas pelo militar republicano. 

Devido às suas actividades oposicionistas foi preso em 1 de Abril de 1931, na sequência do seu envolvimento na Revolta da Madeira e julgado tribunal militar especial em 27 de Maio de 1936.

Por se opor ao regime nacionalista, esteve preso na Ilha de Santo Antão, em Cabo Verde, na década de 30, regressando a Lisboa, em 1936, graças a uma amnistia. Um ano depois, foi de novo reintegrado no Exército Português, mas como reserva. 

A experiência militar marcou a sua escrita, especialmente em Nas Trincheiras da Flandres (1919) e Calvários da Flandres (1920). Como autor de poesia, ficção e textos de intervenção, em que manifestava a sua filiação no ideário republicano, o escritor publicou ainda, entre outros livros, Para a Vida (1906),A Evocação da Vida (1912), Primavera de Deus (1915), A Educação Popular e a Poesia (1922), Nova Largada (1929) e Cartilha Colonial (1936), obra na qual manifestou o seu desejo patriótico de afirmação de Portugal no mundo. 

De referir que Augusto Casimiro foi colaborador da revista Águia e cofundador (1921), dirigente e redator (1961 a 1967) da revista Seara Nova, principal órgão de comunicação que se oponha ao regime de Salazar e aoEstado Novo.

Manteve a sua ligação à oposição democrática ao Estado Novo, tendo integrado o Movimento de Unidade Democrática (M.U.D.) em apoio à candidatura presidencial de Norton de Matos. Participou em 11 de Novembro de 1950, numa sessão para assinalar o armistício da I Guerra Mundial, sendo um dos oradores convidados da sessão que se realizou no Centro Republicano António José de Almeida, juntamente com Mário Soares, o general Ferreira Martins, Maria Helena Mântua e Alves Redol [vide relato descritivo de Mário Soares in Pacheco Pereira. Álvaro Cunhal Uma Biografia Política. O Prisioneiro (1949-1960), Círculo de Leitores, Camarate, 2001, p. 130-132]. Em 1958 foi um dos apoiantes da candidatura de Arlindo Vicente à presidência da República, sendo membro da comissão central da respectiva candidatura. Fez parte também da tertúlia que reunia na pastelaria Veneza, em Lisboa, nos finais da década de 50 e inícios dos anos 60, onde se juntavam habitualmenteFerreira de Castro, Julião Quintinha, Roberto Nobre, Luís da Câmara Reys, Mário Domingues, entre outros. Privou com Teixeira de Pascoaes(seu conterrâneo), Jaime Cortesão (seu cunhado), Raul Brandão e Raúl Proença, entre outros. 
Colaborador regular de variados órgãos da imprensa periódica, dos quais conseguimos localizar os seguintes: A Águia, Alma Nova (Faro-Lisboa, 1914-1930), Amanhã (Lisboa, 1909), Atlântida (Portugal-Brasil, 1915-1920)Azulejos (Lisboa, 1907-1909), Boletim Geral das Colónias, Coimbra dos Poetas (Coimbra, nº único, 1913), Conímbriga (Coimbra, nº único, 1923),Cultura (Lisboa, 1929-1930), O Diabo (Lisboa, 1934-1940), Diário de Lisboa,Diário de Notícias, O Domingo (Angra do Heroísmo, 1909-1911), Gente Nova (Coimbra, 1912-1913), Gente Nova (Lisboa, 1922-1923), Ideia Livre(Porto, 1911-1916), Ilustração Popular (Porto, 1908-1909), A Manhã (Lisboa, 1917-1922), Mocidade Africana (Lisboa, 1930-1932), A Nossa Revista(Porto, 1921-1922), Notícias da Madeira (Funchal, 1931), Panorama (1940),Portas do Sol (Santarém, 1917), Portucale (Porto, 1928-1966), Portugal em África (1894-1910; 1944-1973), Província de Angola, A Rajada (Coimbra, 1912), A Revolta (Coimbra, 1922-1924), República, Serões (Lisboa, 1901-1911), Seara Nova, Tempo (Lisboa, 1975-1989); Tradição (Coimbra, nº único, 1920), Tríptico (Coimbra. 1924-1925), A Vida (Porto, 1905-1910), Vida Portuguesa (Porto, 1912-1915) e A Vitória (Lisboa, 1919-1922).

Augusto Casimiro colaborou na primeira série de A Águia com o pseudónimo de Maria de Castro (Mário Cláudio, “Um caso singular de Heteronomia: Maria de Castro”, Jornal de Notícias, 22-07-1980).
Prefaciou também a obra de Cruz Andrade, A perdição: contos, Tip. Semedo, Castelo Branco, 1957.

Enquanto estudante em Coimbra fez parte do Orfeão Académico.

Entre outras, publicou as seguintes obras:
 Para a Vida, 1906
 A Vitória do Homem, 1910
 A Tentação do Mar, 1911
 A Evocação da Vida, 1912
 O Elogio da Primavera, 1912
 A Primeira Nau, 1912
 À Catalunha, 1914
 Primavera de Deus, 1915
 A Hora de Nun'Álvares – versos , 1916
 Nas trincheiras: fortificação e combate (co-autoria com Mouzinho de Albuquerque), 1917
 Nas Trincheiras da Flandres (com desenhos de Diogo de Macedo e Cristiano Cruz), 1918
 Sidónio Pais": algumas notas sobre a intervenção de Portugal na Grande Guerra, 1919
 Calvário da Flandres: 1918, 1920
 Oração Lusíada
 Os Portugueses e o Mundo
 O Livro das Bem Amadas, 1921
 O Livro dos Cavaleiros, 1922
 Naulila: 1914, 1922
 A Educação Popular e a Poesia, 1922
 África Nostra, 1923
 Nova Largada – Romance de África, 1929
 Ilhas Crioulas, 1935
 A Alma Africana, 1936
 Paisagens de África, 1936
 Cartilha Colonial, 1937
 Momento na Eternidade, 1940
 Portugal Crioulo, 1940
 A Vida Continua, 1942
 D. Teodósio II [trad. do castelhano, da obra de D. Francisco Manuel de Melo], 1944
 O Segredo de Potsdam, 1945
 Lisboa Mourisca: 1147-1947, 1947
 Conquista da Terra: Hidráulica Agrícola Nacional Nun'Álvares e o seu Monumento
 Portugal na História, 1950
 S. Francisco Xavier e os Portugueses, 1954
 Portugal Atlântico – Poemas da África e do Mar, 1955
 Dona Catarina de Bragança: Rainha de Inglaterra, filha de Portugal, 1956
 Angola e o Futuro: alguns problemas fundamentais Obra Poética de Augusto Casimiro (prefácio de José Carlos Seara Pereira), Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2001;
 A Ocupação Militar da Guiné, na História da Expansão Portuguesa no Mundo, vol.III, Lisboa, 1942, pp. 359-362.

Augusto Casimiro era casado com Adelina de Sousa Casimiro. Do casamento resultaram os seguintes filhos: Ângelo Zuzarte Cortesão Casimiro, advogado; Pedro Augusto Cortesão Casimiro, médico; Mário Augusto Cortesão Casimiro; Jaime Zuzarte Cortesão Casimiro; Augusto Zuzarte Cortesão Casimiro. 

Augusto Casimiro faleceu a 23 de setembro de 1967, em Lisboa. Dias antes tinha sido submetido a uma cirurgia melindrosa no Hospital de Jesus. O seu corpo foi depositado no talhão dos combatentes no cemitério do Alto de São João.

Bibliografia Consultada:
- Farinha, Luís, 
República, Guerra e Colónias – um “destino” cruzado do devir português, IHC-FCSH, UNL;

- Fraga, Luís Alves de, Do Intervencionismo ao Sidonismo. Os dois segmentos da política de guerra na 1ª República, 1916-1918, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2010;

- Leal, Ernesto Castro, MEMÓRIAS DA GRANDE GUERRA (1914-1918) NA “RENASCENÇA PORTUGUESA”, Cogitationes. Filosofia, Artes, Humanidades, Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011 

- Matos, Helena, Salazar. A Construção do Mito, 2 vols, Círculos de Leitores, Camarate, 2003;

- Pereira, José Pacheco, Álvaro Cunhal Uma Biografia Política. O Prisioneiro (1949-1960), Círculo de Leitores, Camarate, 2001.



sexta-feira, 14 de dezembro de 2012













O que Cardoso Pires pensa da... Ditadura


  "- E no entanto, hoje, já há quem defenda a relativa benevolência do salazarismo e o considere uma ditadura à nossa imagem, uma ditadura de brandos costumes...

  - Há mesmo quem vá mais longe, há mesmo quem afirme despudoradamente que o sistema salazarista nunca foi uma ditadura. Ouvi isso aqui há tempos num debate da TV pela boca de Franco Nogueira, ex-ministro do falecido Estado Novo, e só me admira que ninguém se tivesse lembrado de lhe perguntar por que razão é que, nesse caso, o regime de Salazar se designava oficialmente Ditadura Nacional... Eu não duvido que a Dura Pax da tal branda ditadura o que pretendia era instituir uma atmosfera de medo tolerado e tolerante. Pacto de convívio entre opressores e oprimidos, o sonho de qualquer totalitarismo é sempre esse. E por essa razão é que Salazar pretendia radicar, por exemplo, a Censura como um hábito social, uma prática familiar de dissuasão, por assim dizer. Chamava-lhe resignadamente «um mal necessário», como toda a gente sabe. Simplesmente, a Censura, além de hipocrisia do Poder, era uma máquina de corrupção e de terrorismo cultural em ligação directa com a Administração e com a polícia política. Foi para denunciar a práxis e os mecanismos que a definiam que eu escrevi a Técnica do Golpe de Censura *. Publiquei esse ensaio em Londres, é certo, mas publiquei-o. E isso aliviou-me a consciência a um ponto que nem pode imaginar. Em Paris, a revista «Esprit» editou-o em tradução integral e, em Madrid, «Cuadernos para El Dialogo» reproduziu-o em grande parte.

- É nesse ensaio que denuncia a destruição da Sociedade de Escritores...

- É uma análise onde, entre outras coisas, falo do terror censório e do terror armado. Descrevo o assalto e a destruição da Sociedade de Escritores por comandos da ultradireita. A PIDE e a Censura estavam estreitamente comprometidas na operação, era evidente, e, como não podia deixar de ser, os activistas da organização Jovem Portugal. Depois do 25 de Abril a Comissão da Extinção da PIDE e da Legião Portuguesa forneceu-me provas documentais dessa operação de terrorismo. Alguns funcionários da Polícia Judiciária estavam envolvidos também nela e havia até um escritor, Amândio César, que teve um papel da mais alta responsabilidade nos acontecimentos. De resto, um assalto em grande estilo, como aquele, contra a resistência cultural à guerra colonialista pressupunha, como é evidente, uma conjugação de forças repressivas a vários níveis para explorar todos os argumentos psicológicos, patrióticos e segregacionistas que legitimassem a ira nacional. E o rastilho pegou imediatamente. A caça às bruxas declarou-se sem hesitações. Prisão de escritores, destruição duma livraria na Rua D. Estefânia, provocações de rua, entrevistas na imprensa e na televisão a soldados estropiados em combate, individualidades pressurosas em condenar publicamente os intelectuais, esses traidores da guerra colonial... sei lá. Ainda me estou a lembrar do locutor Mensurado a dirigir com subserviente comoção uma manifestação televisiva contra os escritores. Pior, pior ainda! Entre os carrascos dos escritores portugueses figurou um poeta angolano que depois da Independência foi recuperado como patriota e figura nacional. O assalto à Sociedade de Escritores sofreu destas alianças bizantinas...

- Depois dessa crista de terror, a pressão abrandou um pouco...

- ... como era regra da «Ditadura dos Brandos Costumes». Os paternalismos ferozes estabelecem o seu equilíbrio através dos ciclos de agressão de que fala Lorenz. Só que, desta vez, o Governo, além de abrandar, resolveu aproveitar-se do medo que ficou a pairar. O «Diário de Notícias» e o Secretariado Nacional da Informação passaram a acenar com prémios oficiais a certos escritores independentes e diga-se de passagem que alcançaram algum resultado. Nessa onda de aliciação recordo-me da atitude exemplar de António Ramos Rosa que, doente e em dificuldades económicas, teve a coragem de recusar o Prémio de Poesia que o fascismo lhe quis atribuir.

- O marcelismo anunciou-se como querendo ter uma outra relação com a cultura...

- O consulado de Marcelo Caetano procurava adaptar a subdoutrina do Salazar a um país desautorizado por fora e por dentro. A própria Polícia Política começava a ver na guerra do Ultramar um imenso cemitério onde jaziam alguns dos seus agentes mais sanguinários, os célebres Flechas. Por outro lado, o alto funcionalismo oficial sentia o futuro comprometido, jogava entre o poder político e a protecção do grande capital. Dou-lhe um exemplo passado comigo no Fundão, meses antes do 25 de Abril. Houve um almoço, era a festa de aniversário do «Jornal do Fundão» e, inesperadamente, vem um aviso do governador civil de Castelo Branco a proibir-me de falar. Porquê, por eu estar na mesa da presidência? Não sei. Mas, pronto, proibia. Eu, sinceramente, não tinha a menor intenção de dizer fosse o que fosse, mas, perante a intimação, não tive outro remédio senão tomar a palavra e denunciar a proibição que acabava de me ser comunicada. Apareceu imediatamente a PIDE que cercou o restaurante e espancou brutalmente um criado. E pronto, a festa ficou por aí. Saímos por entre duas filas de pides que, para surpresa minha, não me deram voz de prisão, limitando-se a deitar-me olhares provocadores. Porquê? Ah bom, porque nessa altura já o horizonte da Ditadura estava pouco promissor. O tal governador civil era ou tinha sido veterinário dum grande lavrador da região que o dissuadira de levar ao fim a operação policial, devido ao telefonema de um amigo que se encontrava no almoço. O obediente governador chamava-se Simplício Barreto Magro, um nome destes nunca mais se esquece. Logo a abrir o ensaio Técnica do Golpe de Censura * deixo-lhe uma referência elucidativa: «Dedico estas reflexões», digo eu lá, «a um cidadão sem letras, Simplício Barreto Magro, veterinário e governador fascista, o qual, proibindo-me, me obrigou a falar de liberdade.» É que aquela reunião foi realmente uma afirmação de liberdade em homenagem a um resistente como António Paulouro e ao jornal que ele dirigia.

* Incluído em E agora José?, Moraes Editores, Lisboa, 1977.

Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 38 - 41










Pequena entrevista a Teixeira de Pascoaes




Entrevista a Teixeira de Pascoaes (1950)
- Gostava de saber o que pensa de Fernando Pessoa. As suas alusões irónicas ao «Supra Camões» e ao «Sumo Poeta da actualidade» parece não deixarem lugar a dúvidas de que Fernando Pessoa não lhe merece muita consideração como poeta...

- Evidentemente.

- Mas então seria muito interessante ouvir a sua opinião, fundamentada, sobre Fernando Pessoa, tanto mais que a teoria do «Supra Camões» foi sob a sua direcção n'A Águia, que ele a expôs, e além disso creio que devem ter convivido um com o outro...

- Conheci-o pessoalmente, mas convivi pouco, ou antes, não convivi com ele. Tinha um aspecto misterioso... Olhe: era quase só nos eléctricos que o encontrava (excepto uma vez em que conversei com ele no Martinho da Arcada). E, a propósito, ocorre-me que, numa ocasião, entrando eu num eléctrico (recordo-me bem, era da carreira da Estrela), deparo com Fernando Pessoa que me pergunta de chofre: «Já notou uma coisa, ó Pascoaes? Há escritores de quem toda a gente fala e ninguém lê, e outros de quem ninguém fala e toda a gente lê. E destas duas espécies, qual, em seu entender, tem mais valor?» Respondi que aqueles de quem toda a gente fala e ninguém lê, e Fernando Pessoa rematou: «é também a minha opinião».

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012









Agostinho da Silva  Entrevista




Agostinho da Silva Entrevista pdf
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Entrevista a Vergílio Ferreira
Aos setenta e dois anos, Vergílio Ferreira publica Arte Tempo (Rolim), um ensaio, nos próximos dias. Para trás ficaram dezanove livros de ficção, cinco volumes de uma Conta-Corrente polemica e apaixonada e nove livros de ensaio. Mas, a vida é só essa bibliografia, ainda que sendo a vida de um escritor?

«Há em nós um segredo que nós mesmos não sabemos» — esta frase escrevia-a Vergílio Ferreira em 1984 e pode resumir aquilo que de mais constante ressoa numa obra de ficção que, desde O Caminho Fica Longe até ao seu mais recente romance, Até ao Fim, vem repetindo e reafirmando espantos sucessivos, inquietações, interrogações e incertezas.
Toda a obra de ficção de Vergílio Fer­reira habita aí, na extrema singularidade das interrogações que romances como Alegria Breve, Cântico Final, Aparição, Rápida, a Sombra ou Para Sempre, não cessam de reinventar aos olhos de muitos leitores. É essa singularidade que atrai as atenções. Na literatura portuguesa contemporânea, nomeadamente na ficção, a presença de Vergílio Ferreira não é unicamente literária: trata-se da presença de uma problemática e de um largo conjunto de duvidas sobre aquilo que de alguma forma designamos de destino, futuro, ser. Interrogação sobre o ser, sobre aquilo que o mundo é na nossa presença e na nossa insistência em permanecer-mos presentes, a obra deste homem não e redutível a nenhuma escola ou corrente literária. É ele próprio que o diz quando afirma que a literatura (o romance...) dá a voz ao que, vindo do silencio, traduz alguma coisa que está para além dela. Por isso se torna tão significativa a utilização da palavra invisível na sua obra — e por isso, ainda, é tão singular o seu trajecto como escritor.
Não há em Vergílio Ferreira, um lugar português: nascida com o fulgor do existencialismo e com os grandes debates so­bre a dimensão metafísica do homem, a obra deste beirão (nascido em Melo, Gouveia, há setenta e dois anos) não é o lugar de nenhuma inquietação sobre o nosso destino senão sobre o nosso des­tino como homens, apenas homens (titulo, alias, de uma colectânea de contos seus).
Depois de Para Sempre (1983), um dos mais belos romances Portugueses do nosso tempo, Vergílio Ferreira publicou, no Verão passado, Até ao Fim — e prepara-se para assistir ao lançamento de um ensaio, Arte Tempo (Edições Rolim), enquanto termina as primeiras paginas de um novo romance.

P. — Continua a acreditar no romance como há alguns anos atrás?
R. — Não. Creio que não. O romance acabou, ou pelo menos acabou uma dada forma clássica de praticar e de ler o ro­mance — como ele nos chegava do século passado e da época de ouro deste século. As ligações do romance contemporâneo com o ensaio e outras formas de escrita não propriamente ficcionais fazem-me pensar que isso a que você chama romance está com os dias contados. A nossa imagem do mundo mudou. A forma como víamos o mundo foi mudando. O romance também.
P — Penso que Invocação ao Meu Corpo é uma dessas obras de compromisso, tal como Carta ao Futuro...
R. — Talvez. São dimensões diferentes mas, de qualquer modo creio que Invocação ao Meu Corpo representa para mim uma obra de mudança no tipo de escrita romanesca que ate aí eu tinha realizado. Sem o saber, evidentemente.
P. — O romance foi um dos mitos do nosso tempo?
R. — Foi uma imagem do nosso tempo, uma visão de algum modo realizadora do nosso tempo. Houve um tempo em que não era possível ver a li­teratura sem o romance, sem essa construção narrativa. Era uma espécie de representação possível. Se foi um mito, acho que não. Foi mais uma ideia datada do que devia ser a literatura e que se foi transformando numa espécie de objecto de consumo corrente. Creio que o ro­mance teve uma época.
P. — A sua ideia de literatura, ou a ideia que dá dos seus romances não é a de uma construção que termina em si própria.
R. — Há coisas a mais no mundo para podermos fixar-nos apenas num universo tão pequeno como é o universo do livro. Aquilo que eu pretendi, e que penso ter conseguido, em certa medida, era transmitir uma dada ideia do mundo e das inquietações que o mundo suscitava através do romance. É evidente que isso pode provocar algumas acusações interessantes em relação aquilo que eu próprio escrevi, mas poderia justifica-lo.
P. — Acha que o romance foi, então, a imagem de uma época?
R. — Sim. A representação literária de uma época.
P. — De que maneira é que se vê ou revê nos seus romances? 
R. — Creio que de todas as maneiras. Os romances que escrevi foram, de alguma maneira, espelhos de outra coisa que passava por eles. A vida, por exemplo.
P. — A sua passagem pelo neo-realismo foi passageira, ou constituiu uma marca fundamental no seu trajecto como escritor?
R. — Creio que grande parte, ou mesmo a quase totalidade de escritores da minha geração passou pelo neo-realismo. Foi um acontecimento funda­mental, a guerra, como sabe. A postura neo-reailista partia do principio de que a literatura, ou o romance, como queira, poderiam colaborar num projecto mais vasto, que era o da transformação da sociedade e do mundo. Todos nós acreditámos nisso, como é bom de ver.
P. — O que é que o fez mudar?
R. — Muitas coisas. Mas o grande acontecimento do nosso tempo foi a destruição do grande mito do nosso século - que foi o mito comunista. Isto é importantíssimo. Repare: o mito comunista foi o grande sucedâneo de todos os mitos anteriores. Enquanto uma corrente política se preocupa com determinados sectores da vida, o comunismo preocupou-se com todos, incluindo a religião, instituindo uma espécie de religião privada...
P. — Acreditou nesse mito? Foi comunista?
R. — Não o fui, só por acaso. Isto é: nunca estive inscrito. Se calhar fui militante mas nunca estive inscrito. Calhou não me inscrever...
P. — Foi quando estava em Bragança?
R. — Exacto. Falhou um contacto que tinha sido preparado e entretanto eu fui reflectindo, vendo bem as coisas. Não nos esqueçamos de que estamos no fim da II Guerra...
P. — Como é que passou da fase neo-realista e de simpatias pelo comunismo até uma fase anti-comunista?
R. — Bom, eu não sou anti-comu­nista. O anti também é uma militância tal como o ateu também é um militante. Eu não sou ateu — sou agnóstico. São coisas diferentes. Não vou agora meter-me em cruzadas anti-comunistas — sou apenas uma pessoa que cortou com uma dada visão do mundo. Sou uma pessoa a quem a verdade se revelou, tanto quanto eu a posso conceber como verdade. O comunismo realizou uma absorção de to­dos os aspectos da vida: tinha propostas para a arte, política, religião, economia... Não é por acaso que no partido existe o secretismo, dedicação, hierarquia, etc. Há um aspecto religioso nisso tudo. Há um poeta nosso — não vou dizer-lhe quem é — que fez uma quadrinha a que eu acho muita piada: «Ó meu querido/Partido Comunista Português/ /Ao dares à vida sentido/Deste-me a vida outra vez.» Isto é profundamente verdadeiro, e o comunismo veio substituir mi­tos, e dar uma chance de salvação...
P. — Diz em vários lugares dos seus livros que nós não sabemos bem para onde vamos, estamos como num aquário. No entanto, a sua vida é feita de eternidades. Fala de «para sempre», de «até ao fim»... Essa procura de eternidade no plano romanesco não esta em contradição com o que diz nos ensaios — no plano filosófico, portanto?
R. — Não sei se é contradição...
P. — Talvez sejam duas faces... dois aspectos...
R. — Está certo. A eternidade em si representa uma certa fascinação. Não o posso esquecer... Além disso, quando falo de «para sempre» ou de «até ao fim», falo de um absoluto, de uma eternidade nos limites da vida, porque a vida, para mim é um absoluto e não é mais nada para além dela... Mas a concepção que eu tenho da eternidade é a da suspensão do tempo. Ou, se quer: sinto a eterni­dade, por exemplo, naquilo que suspende o tempo, na fruição da obra de arte... Em tudo aquilo que eu escrevi, esses conceitos são termos de referência... para me explicar diante de mim próprio...
P. — isso acontece também com Deus... Você está sempre a dizer que Deus não existe, e está também sempre a falar de Deus...
R. — Mas Deus existe ou como problema ou como ponto de referenda... É um ponto de referenda para nos situarmos. A eternidade é (no que diz respeito à vida), o facto de se conceber a vida como um absoluto, como um total: para lá ou para cá dela não há mais nada... Esse «para sempre» não ultrapassa a morte... tal como o «até ao fim« é só até ao fim da vida.
P. — De que maneira é que «para sempre» ou «até ao fim» têm a ver não com aquilo que escreveu mas com aquilo que é ou foi a sua vida?
R. — Toda a obra que eu escrevo tem a ver com a minha vida, suponho eu. Ou então eu não entendo bem a sua pergunta. Quer saber se o que eu escrevo tem a ver com a minha vida?
P. — Exactamente.
R. — Tudo tem a ver com a minha vida. Um livro, no fim de contas, é um resumo da minha vida, das minhas obsessões, das minhas preocupações.
P. — E teve muitas obsessões ao longo da sua vida?
R. — Creio que sim. Devo ter tido. Creio que já não me lembro. Mas esta é fundamental; o problema de me interrogar sobre o meu destino, de dar significação a tudo o que me ocorre, ao modo como ele (mundo) me é. A vida tem a sua significação máxima nela própria e em nada do que a excede. Portanto, a vida é um valor maior. É um absoluto. Foi esta a minha principal obsessão, aquela de que fui colhendo outras obsessões secundárias. Como sabe, as obsessões secundárias são mais importantes, às vezes, que as obsessões chamadas principais...
P. — E o medo da morte? Já teve medo da morte?
R. — Não confundamos medo com intriga, com tentativa de vencer o muro para Ihe achar uma significação. Não confundamos isso. Medo da morte toda a gente tem...
P. — ... mas já teve ou não?
R. — Como sabe, eu já tive a morte à minha frente quando me aconteceu aquele enfarte de miocárdio. E disse a minha mulher: «eu vou morrer». E perdi a consciência. Sentia que o mundo estava a desaparecer diante de mim. De resto, nessa altura estamos tão preocupados com a morte real que não pensamos na morte como ela se nos representa neste momento, falando dela como de uma ficção...
P. — Mas reflecte sobre isso?
R. — Sim, mas não é um problema doentio. As pessoas geralmente não reflectem nem querem que se fale disso. Ainda há pouco tempo saiu um livro do Saul Bellow em que ele retoma alguns problemas metafísicos fundamentais — e alguém que escreveu uma crítica do livro dizia que «essas coisas já não interessam hoje em dia, que há trinta ou quarenta anos sim, tinham importância»... Isto é ridículo! Estes problemas não se resolvem! Isto é um problema de sempre. É natural que as pessoas queiram mesmo reflectir sobre isso mas a maior parte dos «observadores atentos» de hoje dão logo respostas como se isso fosse uma pergunta. Ora, isso não é uma pergunta. As respostas vêm da sacristia, do confessionário, do partido. O problema não é esse. É que essas questões não são perguntas, são interrogações e as interrogações não têm resposta. Ou tem-na numa religião.
P. — Continua a sentir-se inquietado pelas interrogações como as desse tipo?
R. — Muito menos... De vez em quando a intriga sobe, evidentemente. Mas por que razão e que isso acontece? Por causa da própria fadiga de questionar e por causa da idade (porque a natureza, apesar de tudo, está bem feita...). À medida que eu vou chegando ao fim (tenho uma carga de anos...), vou guardando silêncio. Creio que a natureza se encarrega de me ir organizando a maneira de ser e de sentir para me harmonizar com a proximidade da morte. Da morte real. Amanhã ou depois. De facto, esse tipo de questões inquietam-me menos. Cada idade está organizada para nos orientarmos da dada maneira, as vezes voltam, não o nego...
P.— Nunca fez balanços de si próprio?
R. — Não. Não gosto muito disso. As pessoas têm a ideia de que eu vivo muito no passado. Não. O passado e legendário. Para mim, é uma fascinação como a obra de arte. Sinto nostalgia, evideme­mente. Mas é uma nostalgia sem tristeza. Por isso é que eu não recordo — evoco. Não tenho grandes ilusões sobre isso de voltar à origem. Estou aqui como no princípio das minhas coisas. No princípio de mim. O passado tem uma marca de eternidade, é o que é.
P.— Mas nos seus livros fala muito dele, do passado. Evoca-o?
R.— Bom, sim. Porque a matéria estética está lá feita, de certo modo, an­terior ao presente, já corporizada. Nós vemos bem aquilo que não vemos, sobretudo — e o passado é aquilo que nós ve­mos menos. Aquilo que está mais perto dos olhos são os próprios olhos e nós nunca os vemos. O passado, para mim, existe como matéria estética, já feita para a sensibilidade estética. É mais fácil, de­pois, essa recriação em livro. Os meus livros são, fundamentalmente, formas de viver o passado sem o magoar, sem o ferir. Detesto ferir.
P.— Que significado dá à expressão «para sempre?»
R.— Não sei. Você faz-me uma per­gunta agora, e agora e que eu tenho de pensar...
P.— Claro...
R.— Não sei... é uma certa dose de nostalgia, de fim de vida que se realizou completamente. É isso. Completamente. É a historia de um homem que fechou o ciclo da vida e que rememora, procurando cortar um pouco o mel e a doçura desse prazer da evocação com acidez e ironia.
P.— Por que razão insistiu nessa versão da vida com este novo titulo, Até ao Fim?
R.— Porque eu queria dizer, de algum modo, que a destruição dos valores (que é o que marca de um modo geral, os actos que hoje dominam certas áreas da juventude) é uma coisa terrível. E que­ria, por uma razão de amizade para com o António Ramos Rosa, encontrar um verso dele que significasse isso, que dissesse isso. E foi: «perseguido até ao fim, acho o mar». Este verso resume o meu objectivo. Achar o mar como um símbolo, como uma metáfora dessa alegria, que é a alegria da pacificação, da eterni­dade, da plenitude, da juventude plena. Depois há outra coisa, evidentemente: eu quis sempre que os títulos dos meus livros tivessem alguma coisa de si próprios, um certo valor estético. Não me interessam os títulos puramente designativos, como o rótulo de um frasco. Quero que o titulo seja em si mesmo um sinal e um valor estético e poético. Que fosse uma abertura, um começo de um poema.
P.— Que coisas cresceram em si desde O Caminho Fica Longe até este seu último romance?
R.— Cresci eu todo. Em mim cresceu tudo. Penso, de qualquer modo, que aquilo que mais cresceu em mim foi o carácter de adulto.
P.— Isso trouxe-Ihe desilusões?
R. — Não tem a ver com desilusões. Tem a ver com a justa perspectivação das coisas.
P. —Mas teve muitas desilusões?
R. — Pois tive. Na vida corrente, a vinda para Lisboa foi muito desagradável sobretudo no domínio pessoal. E isso já foi há muito tempo. Mas essas coisas pessoais não interessam à conversa...
P.— Interessam sim...
R.— Não interessam nada... eu sou muito assim, desculpe. Vir para Lisboa foi extremamente difícil por que eu vim de Évora, de um ambiente que estava mais certo comigo, que estava certo com aquilo que anteriormente eu tinha sido — e até estava certo com aquilo que escrevi, com os meus livros. O ambiente de lisboeta, inicialmente, foi muito mau, porque fui recebido como um traidor...
P.— Um traidor?
R.— Sim... Um problema ideológico... Pergunte a esse senhor que disse que Aparição era um livro reaccionário. Vim para Lisboa quando publiquei Aparição e isso caiu mal nos neo-realistas. Só houve uma pessoa que tomou o meu partido na altura, o João Rui de Sousa. Ninguém mais. Foi tudo a arrear. O que é que estava em causa? Naturalmente, a pessoa deles, porque é sempre isso que está em causa, só. O resto, religiões, política, sociedade — são pretextos. Uma pessoa (essas pessoas...) quer é afirmar-se a si. Nós temos duas vozes em nós. Uma diz «ama o teu semelhante porque é teu irmão». Outra diz «esmaga o teu irmão porque ele é teu concorrente...» Ora, esta é a voz que permanece... Questões antigas...
P.— Na Conta-Corrente zangou-se com algumas pessoas. Isso trouxe-lhe problemas?...
R.— ... ah! Claro que me trouxe muitos problemas. Só se eu fosse insensível a muitas maldades que me fizeram é que não reconhecia isso. Se uma pessoa me ofende e eu não reajo, acho que essa pes­soa fica um pouco decepcionada. Portanto, eu devo reagir. Até por uma questão de educação... E ao mesmo tempo alivio-me...
P.— Como é que se vê no meio literário português?
R.— Em certa medida, e eu não gosto nada da expressão, vejo-me um pouco como um marginal. Sou um marginal e não me sinto mal por isso. Já houve quem dissesse que eu era um escritor maldito. Não. Não sou nada disso. Fico à margem da história das principais festividades literárias, é certo. E claro que es­se não é um lugar muito agradável por­que cai lá muito pó e muito lixo... Mas, de facto, não estou na estrada brilhante dos triunfadores, esses que vão por aí fora. Eu deixo-os ir. E rio-me muitas vezes das figuras que eles fazem...
P. — Acha que há corredores profissionais?
R. — Ah, sim...Literatura de consumo, literatura que se esquece logo. São alguns, como parte da nova literatura norte-americana, pelo menos entre os mais jovens. Eu li o Mclnerney, As Mil Luzes de Nova lorque e não me pareceu mau de todo. Mas esses livros são medíocres, uma espécie de literatura de maus costumes...
P. — Mas, sente-se isolado na literatura portuguesa contemporânea?
R. — Não sei. E inacreditável, mas eu não sei mesmo. Tenho escrito aquilo que eu penso, o que é uma das formas de praticar o romance. Tenho uma família literária pequena. Mas, repare, já tenho alguma idade. Fui ficando, sabe-se lá até quando a vida mo vai permitir. Mas gosto. Gosto muito.








Entrevista com José Régio. «O ponto G», segundo Régio!




José Régio, em Portalegre, à cata de velharias para a sua vasta colecção...
R.B.- Meu caro José Régio, li hoje no JN, que a sua obra poética foi considerada ultrapassada (pela temática obsoleta à base de Deus e do diabo, do bem e do mal...) nem sequer constando o seu nome numa antologia publicada em França em 2003. Manuel Poppe, escritor e jornalista ilustre, insurge-se contra esse «enterramento». Quer tecer algum comentário?
J.R.- Ainda bem que me dás a palavra, meu caro Rouxinol. Não estou «enterrado» embora alguns o queiram fazer. A problemátia do bem e do mal é eterna e nunca terminará. Agora com os fundamentalismos belicistas, atingiu proporções de pandemia até. Acredito que se queira acabar com distinções entre o bem e o mal para nivelar tudo pelo modismo dominante. Camões, por exemplo, não acreditava nos deuses, mas, apesar de tudo, colocou-os na sua obra como efeito decorativo e até como homenagem às culturas grega e romana. Também quererão erradicá-lo («enterrá-lo»...) por isso?
R.B.- Eu estou do vosso lado, também sinto que os novos ditadores da moda literária querem espaço para si à custa dos que não estão cá para se defenderem. A problemática do bem e do mal já vem desde os tempos mais remotos e nunca deixará de existir. É óbvio que não se trata de maniqueismo estulto, mas sim, a contrario, do aprofundamento das raízes maléficas e dos alicerces das virtualidades humanas, no sentido de melhorar estas e erradicar, na medida do possível, aquelas...
J.R.- É isso mesmo, Rouxinol. Eu sempre fui de um agnosticismo salutar, deixando sempre uma porta aberta para a crença, respeitando as tradições mas pondo dúvidas, desassossegado com esta problemática que nos envolve e cujo desfecho é sempre motivo de aprofundamentos diversos, de análises multifacetadas, estudos da mais variada índole. Mas «sanear» escritores sempre foi típico de certo pedantismo intelectual. Sei bem que uns foram maiores, outros menores. Uns mais profundos, outros mais aligeirados. Uns mais cultores do estilo e da semântica, outros, mais virados para o gongorismo de formas, para a redundância. Cada qual no seu patamar, deverão ser respeitados. Aleixo não pode ser equiparado a Pessoa ou a Camões, mas deve existir e ser lembrado pelo que foi, pelo que representou.
R.B. - O que acha da problemática religiosa nos tempos actuais?
J.R._Acho muito interessante. O papa, ao abordar o ponto G. na sua nova encíclica é digno de meditação e de aplauso!
R.B. -É de índole sexual a tal encíclica?!
J.R. - Não, nem de perto nem de longe! Limita-se a abordar o problema da globalização e sua implicação na doutrina e no nosso viver colectivo. Ele vai aprofundar uma temática nova e de grande impacto futuro. Era bom que falasse também do ponto G. das câmaras municipais, dos governos, esses sim, também merecem uma análise profunda!...
R.B. - Ponto G. nas câmaras e nos governos?! Mas quereis referir-vos a quê, concretamente?
J.R. - Eu não estou enterrado, muito embora alguns me julguem. Eu estou atento aos excessos de generosidade (daí «ponto G»...) de algumas câmaras, dando mordomias a torto e a direito, facilitando reformas antecipadas aos politicamente gratos, veja-se o «caso Dourado» na Póvoa e tantos outros por esse país fora... Depois há os excessos com certos empreiteiros que ganham todos os concursos (limitados...) e são prendados com «obras a mais» de tal sorte que tal generosidade é apenas um puro esbulho do erário público. É óbvio que esses empreiteiros alvo de tanta generosidade , depois, por gratidão, também são generosos com certos clubes, certos partidos, certos dadores de prebendas... É o «ponto G» no seu expoente máximo, às vezes o clímax da corrupção mais desbragada!...

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012



                                 AUGUSTO ABELAIRA








Entrevista de José Carlos Abrantes e Dora Santos
Homem de convicções, de militância cívica, foi professor, jornalista e escritor.
Sustenta que hoje já não se escrevem maus romances, embora já não existam também romances que nos surpreendam.


NOESIS: Ainda recorda hoje professores?
AUGUSTO ABELAIRA: Sim, não muitos. Quer dizer, julgo recordar mais professores, mesmo até os que não eram brilhantes, do que os alunos de hoje. No meu tempo, sabíamos o nome de todos os professores. Verifico que os alunos actuais, mesmo os das faculdades, não sabem o nome de todos os seus professores, o que é completamente estranho. Durante estes últimos 50 anos qualquer coisa se passou do ponto de vista do desinteresse. Apesar de tudo, as pessoas têm um nome... Passar um ano inteiro com uma pessoa, que debita umas coisas (mal ou bem), e não se saber o nome é uma coisa esquisita.
Como sabe isso?
Porque tenho perguntado a jovens, a filhos e netos de amigos meus.
É, de facto, uma despersonalização estranha...
É curioso. No meu tempo, sabíamos... e não vem só do meu tempo, que não era melhor, nem pior...
Lembro-me do meu professor de Português do 1º ano, Pires de Lima, que, aliás, era um bom professor. E ele dizia, "cada ano que passa, vocês são mais burros". Depois, quando fui professor, verifiquei que alguns colegas diziam o mesmo. É claro que, com este critério, se, de ano para ano, cada vez se fosse mais burro, onde é que os actuais alunos estariam? Em que grau de "burrice" estariam? Mas eu tive alguns bons professores e personalidades que me influenciaram. Como professores, tive dois excepcionais: Vieria de Almeida e Edmundo Curvelo.
Ainda os recorda, porquê?
Eram sabedores e sabiam mais do que o que transmitiam. Eram do género do professor que sabe mais do que aquilo que ensina, bem entendido. E com vistas largas. Falavam de tudo. Não falavam apenas da matéria. Ou então, a matéria permitia que eles falassem de muitas outras coisas. Eram verdadeiramente professores que estimulavam a cultura do aluno. Tive um outro que também era bastante bom, no liceu. No liceu, não! No colégio, porque ele tinha sido proibido de ser professor da Universidade do Porto. Era o Newton de Macedo.
Houve uma outra personalidade que me marcou muito, embora as minhas relações fossem más com o indivíduo em questão. Mas foi talvez o homem que mais influência teve em mim e para castigo dele ele nunca o soube. Eu nunca lho disse, nunca lhe dei esse rebuçado. Era o António Sérgio, que, por umas desconfianças a meu respeito, me via com um pé atrás.
Por razões ideológicas?
Sim, por razões políticas. Por acaso, até se enganava comigo...
Mas isso não impediu de ter essa grande admiração por ele.
Sim, não impediu. As minhas relações com ele acabaram por não ser brilhantes e, no entanto, foi um dos primeiros pensadores que li quando ainda era miúdo. O meu pai era assinante da Seara Nova e eu li os ensaios dele. Portanto, foi talvez a grande figura que na minha adolescência se impôs.
É uma figura que ainda hoje tem prestígio.
Hoje, acho que já ninguém o lê.
Enfim, é mais uma referência para alguns pensadores...
Os pensadores que existem, de um modo geral, até não são muito afectos a ele, o que não tem importância absolutamente nenhuma. O papel do Sérgio não era que as pessoas concordassem com ele, embora ele desejasse que concordassem. Até porque o espírito aberto dele era bastante teórico, bem entendido, mas o que importa aqui era a teoria. Ele gostava de ter razão.
Na sua família, também houve uma influência forte.
O meu pai e a biblioteca do meu pai, naturalmente... se tenho nascido num meio que não fosse esse, com outro pai e com outra biblioteca, naturalmente teria sido diferente.
Nessa altura, não era muito vulgar...
Havia uma pequena burguesia ilustrada, apesar de tudo. Digo isto porque muitos colegas do liceu tinham pais semelhantes.
O liceu tinha pouca gente, logo...
Pois, o liceu, nessa altura, era o Rodrigues de Freitas. O meu liceu começou por ser no Porto, mas acabei em Lisboa. Os meus primeiros anos de escola são na aldeia de Ançã, onde as influências livrescas dos pais eram pequenas. Mas, quando vou para a 4ª classe, já no Porto, entre os meus colegas, havia indivíduos interessados em leituras e reflectindo uma casa paterna com interesses culturais. Era o período da Guerra de Espanha e da outra guerra. A política, nessa altura, também era estimulante de cultura.
Havia um clima político de opressão e portanto havia necessidades...
Havia sempre nas turmas filhos de pais, filhos de famílias ilustradas. Também não havia televisão, de modo que ao jantar conversava-se. O que é que faziam senão conversar, pelo menos, essas famílias cultivadas? E o que é que se havia de fazer senão ler? Como preencher uma noite inteira, depois do jantar, até à meia-noite, para além da hora e meia dedicada aos estudos? O que é que um indivíduo havia de fazer? Conversar e também ler alguma coisa.
Depois de ter feito o curso, tornou-se professor.
Fiz o curso em Lisboa.
E tornou-se professor imediatamente?
Sim. Há coisas que parecem paradoxais, mas não são. Não me foi permitido ser professor no ensino particular e foi-me permitido ser professor do ensino oficial.
Deveria ter sido ao contrário.
Ainda guardo, em qualquer sítio, o papel da PIDE a recusar isso. O Ministério pedia um parecer para professor do ensino particular. Aparentemente, para professor do ensino oficial não pedia. Claro que também é fácil de pensar que um professor no ensino oficial estava muito mais controlado do que um do ensino particular.
Portanto, quando iniciou a sua actividade como professor já era uma pessoa que se tinha manifestado politicamente ao ponto de...
Sim... ao ponto da polícia rejeitar. Havia essencialmente assinaturas de papéis, as famosas assinaturas...
E, como professor, teve uma actividade interessante?
Sim, gostei bastante de ser professor. Pelo menos da disciplina de filosofia e também da de organização política, mas aí, o que eu fazia era falar-lhes de pintura, de música, etc. Depois, mandava-lhes ler o manual para os exames. Aí, o reitor, que era um indivíduo muito conservador e do regime, senão não seria reitor do Liceu D. João de Castro, de facto era complacente. Simpatizou comigo, talvez porque eu nunca faltava. Ele embirrava com os professores que faltavam. Eu nunca faltava, de modo que talvez eu beneficiasse disso. Tinham de lhe chegar aos ouvidos certas coisas mas ele era bastante complacente e, de facto, nunca me incomodou. Mesmo uma ou outra coisa que nas aulas sempre se dizia, porque não era fácil passar “moeda falsa” nas aulas, mas alguma sempre se podia passar. Quando se entra no domínio da cultura, é evidente que muita coisa pode ser dita nas entrelinhas.
Nesse período já tinha começado a escrever?
Sim. Comecei a escrever bem novo.
Depois, começa a publicar...
A publicação é posterior a ser professor.
O primeiro livro que publica é nos anos 50 ou 60?
Acho que foi em 59.
Foi "A cidade das flores"?
Sim.
Nessa altura, ainda era professor?
Não. Nessa altura, já não era professor.
E tinha outra actividade?
Fazia umas traduções. Eu saí do ensino por uma determinada situação. Eu era professor eventual, não tinha feito o estágio. Nessa altura, o estágio era feito em Coimbra.
Era o único sítio onde era possível?
Sim. Depois, passou também para Lisboa, para o Liceu Pedro Nunes. Mas, na minha época, era feito em Coimbra e ir para Coimbra era um bocado complicado, vivendo em Lisboa. Embora, sob certos aspectos, fosse mais fácil... eu sou de ao pé de Coimbra. Mas mesmo assim era complicado e nunca o fiz. Portanto, eu era professor eventual e tinha de concorrer todos os anos. E há um ano em que, em vez de concorrer para o D. João de Castro, como deveria ter feito, não quis concorrer para liceu nenhum. Ia para onde me mandassem. E fui parar ao Gil Vicente e o reitor quis que eu desse umas aulas de ciências naturais ao primeiro ano. Eu objectei que em Ciências Naturais era um incompetente. E ele disse que eu era suficientemente inteligente para ler o compêndio na véspera. Eu disse: "Não quero fazer inimigos das ciências naturais para todo o sempre". E, portanto, aí acabou a minha actividade de professor. Desde que se recusasse a dar uma aula, uma disciplina ou a aceitar uma incumbência, só daí a 3 anos é que se poderia regressar ao ensino.
Isto é uma história que se passa antes do 25 de Abril. Eu só gostava de ter a certeza que hoje não se poderia passar alguma coisa de semelhante. Já não com reitores, visto que já não há reitores, mas com as comissões directivas que existem.
Acha que ainda poderia acontecer?
Acho que sim, por uma ou outra coisa que às vezes vou ouvindo.
Como é que uma pessoa se torna escritor?
Mas eu tive sempre outra actividade para além de ser escritor. Fui jornalista ou fiz traduções.
Sempre teve outras actividades?
Quase sempre. Também conheci uns períodos de desemprego.
Teve uma vida interessante, porque foi jornalista, foi director de revistas... foi director de programas da RTP.
Fui. Quer dizer, na prática, fui, na realidade, era ajudante do director, só que não havia director.
E isso em que período?
Foi em 77/78.
E já nessa altura a televisão era um problema como é hoje?
Exactamente. Alias, eu demiti-me apesar dos convites para assumir mesmo a direcção de programas. Mas demiti-me porque cheguei à conclusão que não valia a pena. O Leonardo Coimbra sugeriu uma vez que se solucionava o problema da Universidade de Coimbra fechando-a e abrindo-a três meses depois... Eu, pessoalmente, cheguei a conclusão semelhante a propósito da RTP, embora as outras televisões sejam talvez piores do que a RTP. Mas percebi que a RTP não tinha emenda e eu senti-me sem paciência. É preciso uns murros na mesa e atitudes naturalmente ditatoriais para as quais não nasci.
Tinha a responsabilidade da programação ou só da parte cultural?
Só da parte cultural, não da parte noticiosa.
Conseguia-se fazer alguma coisa?
Pois... conseguia-se fazer algumas coisas, mas mal. Por exemplo, tentar manter viva semanalmente uma peça de teatro portuguesa, por exemplo, coisa que o fascismo tinha feito, bem ou mal. E, depois, nunca mais foi possível fazer. Certos programas de história, para os quais convidei o Oliveira Marques, et c. Agora, é evidente que foram feitos muitos programas, mas quase sempre fracos.
Mas era por ser televisão ou por não haver, na altura, sabedoria para fazer isso?
Não sei... Não basta saber de um assunto para se fazer um programa de televisão bem feito. É preciso anos de experiência, etc, etc. E, aliás, a televisão desistiu de fazer coisas desse género.
Como jornalista, dirigiu a Vida Mundial, a Seara Nova, que é uma revista que teve uma grande importância...
Ela teve sobretudo uma grande importância nos tempos do Sérgio e do Raúl Proença. Teve uma grande importância quanto à riqueza das ideias. No tempo em que eu estive à frente da Seara Nova já não tinha, em minha opinião, a mesma importância.
E isso foi antes do 25 de Abril?
Começou no ano da queda de Salazar. Talvez em 69, ainda com Marcelo. A Seara Nova era uma das raras publicações de resistência ao fascismo.
Mas define também como sua profissão ser jornalista ou o ser jornalista foi...
Eu sou nomeado director da Seara Nova porque sou um nome menos queimado do que os outros poderiam ser perante a censura. Era preciso obter autorização da censura para se ser director da Seara Nova. E, dentre as pessoas que poderiam ser directoras da Seara Nova, apesar de tudo, o meu nome era o menos queimado, era aquele que menos problemas poderia levantar à censura, visto que a censura tinha de aceitar alguém. A censura também estava interessada em que existisse uma revista para poder dizer que havia liberdade de escrever.
Depois, ainda colaborou muito no "Jornal".
No Jornal, colaborei anos.
A Vida Mundial foi depois do 25 de Abril...
Sim, a Vida Mundial foi depois do 25 de Abril. Mas antes colaborei no Século, como faz hoje o Prado Coelho. Eu também escrevia numa crónica diária, na primeira página. Era um imitar do Le Monde. O Le Monde tinha o Escarpit, que fazia umas crónicas admiráveis, que vinham na primeira página. E foi inspirado por essas crónicas que o director do Século me pediu que colaborasse.
Deve ser muito difícil, para um escritor, escrever um texto tão pequeno.
É. Mas, depois, ganha-se o hábito. Porém, não é sempre interessante.
Essas crónicas existiram desde o dia 1 de Janeiro de 74 até ao dia 25 de Abril de 74. A última crónica que eu escrevi, nem sei o que era. Perdeu-se. O jornal do dia 25 de Abril saiu logo às 5 da manhã com outras preocupações. Tenho vagamente a ideia de que era sobre o Parque do Gerês. Mas, enfim... Iam fazer uma estrada.
Hoje, também se põe esse problema no Montesinho. Também andam a dizer que querem lá fazer estrada.
Pois... era o começo das preocupações ecológicas que, nessa altura, ainda estavam a nascer. São bastante posteriores à guerra. A partir do 25 de Abril, decidem chamar-me para director da Vida Mundial, que pertencia ao Século. Nessa altura, vou para director da Vida Mundial de onde saí como consequência do 25 de Novembro.
A Vida Mundial ainda teve um período grande.
Sim, depois de eu sair ainda durou mais um ou dois anos. Aliás, como o Século.
Qual a sensação que hoje tem. Toda a riqueza da sua escrita... os jovens, hoje, estão a aprendê-la na escola? Tem alguma ideia sobre isso? Costuma ser chamado pelas escolas? Acha que os jovens hoje lêem ou passam mais o tempo a ver televisão?
Tenho um neto que já se encontra no 7ª ano. Mas depois há uma lacuna em eu contactar com jovens do liceu. Com estudantes da faculdade ainda contacto. De modo que eu não sei bem o que se passa e os conhecimentos que tenho, dos liceus, da periferia de Lisboa, são terríveis.
Em que sentido?
De desinteresse completo, mas óbvio, da maior parte desses alunos. Alguns mal sabem Português. Vêm de Cabo Verde e são atirados sem saber ainda português para ficar em aulas em que mal aprendem. Por outro lado, são alunos com pais que passam a vida fora de casa a trabalhar e fecham a porta de casa. Portanto, são alunos que andam na rua. Depois, é a violência. Não tenho propriamente informações que me tranquilizem. Embora a versão que o meu neto me dê seja razoável. Mas já é de um liceu mais do centro de Lisboa.
Seria possível pôr os alunos a ler mais...
Alguns professores queixam-se que os alunos não sabem ler, que não percebem o que leram. Havia uma coisa que no meu tempo se fazia, logo na primeira classe. O professor mandava-nos ler um texto e depois dizia: "Resuma". E a gente tinha de resumir e para resumir é preciso ter percebido. Não sei se hoje se faz isso ou outras coisas parecidas.
Hoje, os professores de liceu queixam-se dos alunos que vêm da escola primária e os professores universitários queixam-se dos alunos que vêm do secundário.
E os professores da primária também já se queixam que os alunos não tiveram educação pré-escolar.
Pois. Lemos no jornal o que dizem às vezes alguns professores universitários acerca dos alunos não saberem ler. Já não falo do que dizem os professores de Matemática. Um professor de Braga, ainda não há muito tempo, dizia que lhe apareciam alunos que não sabiam tirar a raiz quadrada. Mas eu não tenho opinião. Vejo que em França as coisas também são complicadas.
As coisas também não estão a evoluir bem...
A escola é hoje um problema em todo o lado. Pelo menos em alguns lados, conforme me chega. O que é que os Ministérios podem fazer? Não sei... é muito complicado.
Sobretudo, porque é uma situação muito diferente daquela que o Augusto Abelaria viveu e que eu também, em certa medida, vivi. Os problemas nas escolas eram muito diferentes porque, numa turma de 30 alunos, dois ou três é que seguiam estudos e os outros ficavam a trabalhar no campo ou em ofícios. Hoje, está toda a gente na escola.
É evidente que a democratização do ensino trouxe esses problemas, que têm de ser resolvidos.
Hoje, temos alunos nas universidades que vêm de todos os meios, de todas as culturas.
E isso é uma coisa boa, mas cria problemas de referência, acho.
Quando escreveu a "A Cidade das Flores", situou a acção em Florença. Eu até estive a reler o livro e a reparar no facto de escrever sobre uma cidade quando nunca lá tinha estado.
Pois, mas o problema é que as pessoas pensavam que eu tinha estado.
Mas como é que é possível?
Então, consultando o Guide Blue e outras coisas assim. De modo que, quando fui pela primeira vez a Florença, depois de ter escrito “A Cidade das Flores”, fui visitar os sítios que tinha descrito.
Isso é uma coisa fantástica. A capacidade de criar que um cineasta, que um escritor tem.
Sim, é divertido. Mas eu não fazia grandes descrições. As pessoas também são um pouco iludidas pelo aparecimento de alguns nomes...mas, efectivamente, o cenário, a descrição não estão lá.
Os professores, por exemplo, teriam ou não um papel em estimular essa criatividade?
Eu acho que sim, dentro de certos limites, como é óbvio. Acho que um bom professor pode desenvolver, nos alunos que saibam português, não nos outros que nem português sabem, a atenção para certas coisas. Também não sei como é que isso se faria, também nunca fui professor de português, mas lembro-me que o meu professor da 1ª classe nos dava alguns conselhos (uns eram bons, outros eram maus), mas nós tomávamos atenção.
Como por exemplo?
Já não me lembro. As coisas perdem-se. Mas lembro-me que tomava atenção a certas coisas. Não direi, pura e simplesmente, evitar os "ques" mas o evitar os "ques" também tem alguma importância. Não é por aí que o gato vai às filhoses, bem entendido, mas...
O episódio de Florença é único na sua escrita? Ou seja, descreveu uma coisa que não conhecia nesse livro ou isso também lhe aconteceu noutros livros? E aí foi uma artimanha, por causa da censura?
Sim, aí foi uma artimanha. Mas há um outro livro em que também foi uma artimanha. Esse outro livro passa-se em Portugal durante as vésperas do 5 de Outubro. Também descrevo um ambiente que não vivi e para o qual tive de andar a folhear alguns livros, para dar um certo ambiente.
A criação literária é algo que seduz...
É tudo uma questão de paciência. Escrever um romance é uma questão de paciência. Escrever contos é preciso muito talento. O conto é uma coisa muito séria. Mas escrever um romance é um problema de paciência e de um indivíduo dispor de anos para depois cortar e ir fazendo, ir trabalhando... é uma questão de paciência. Não digo que com esta paciência se possa escrever os Irmãos Karamasov, bem entendido. Mas estou convencido que se escreve um romance razoável. Aliás, hoje, já não há romances maus. Mas hoje também não há romances muito bons, como havia no tempo de Balzac ou do Thomas Mann.
Será por isso que prefere ler divulgação científica a romances modernos.
Sim, acho muito mais interessante.
Mas porque é que já não lê romances modernos, acha que já não têm qualidade?
Têm qualidade. Até porque eu defendo a tese de que hoje já não se escreve mal. Todavia, aparentemente está tudo mais ou menos dito e redito. De modo que, aquele golpe de génio, a sensação de, perante uma página, se ter aquela emoção e se poder dizer "aqui está uma coisa nova, eu saio desta página diferente do que entrei para a página" já não acontece. E, apesar de tudo, acontecia quando se lia Thomas Mann e outros. Mas também pode ter a ver com a minha velhice. Hoje, encontrarei alguns romances com prazer, são bons romances. Mas, verdadeiramente, já não sou surpreendido por eles. É evidente que, dizia um autor francês, só há 30 e tal temas romanescos e já estão todos na tragédia grega. Mas, até há não muito tempo, foi-se moendo aquela farinha e foi dando algum resultado. Aliás, eu costumo citar, a propósito disto, uma frase do Pascal, que me parece justa. Ele dizia que a bola é sempre a mesma o que é diferente é a maneira de se bater na bola. E isso é que faz o escritor. É a maneira como bate na bola. Mas, em resumo, de facto, hoje, entusiasmo-me muito mais a ler livros de divulgação científica. Pode ser defeito meu. Encontro mais imaginação na divulgação científica do que nos romances, porque já mais ou menos sabemos o que se vai passar a seguir. Não há muitas coisas mesmo para se passar. Não há! Até temos de ficar espantados como é que o romance propriamente dito durou, admitindo que começou com o Cervantes, três séculos a moer a mesma farinha. Já foi muito!
Acabou por dizer que hoje não se escrevem maus romances.
Hoje, há uma fórmula.
Também se expandiu mais essa técnica da escrita.
Até se ensina.
E acha mal que haja ateliers de escrita criativa?
Não, acho bem.
Actualmente, também há outras formas artísticas, nomeadamente o cinema e já não digo a televisão, pois pode ser mais discutível.
Sim, o cinema é um rival da literatura. O que me parece é que o cinema, sobre certos aspectos, está um bocado esgotado, no sentido de já não haver grandes cineastas, que ainda eram vivos há 15 anos. Não é preciso ir ao expressionismo alemão.
Em termos de sociedade, acha que vamos no bom caminho?
Não lhe sei responder. Apesar de tudo, penso sempre numa coisa, embora isso não demonstre nada. Apesar de tudo, se considerarmos a vida dos homens no tempo da Assíria ou no tempo da Idade Média, temos de admitir que houve, pelo menos no mundo ocidental, um certo progresso, no nível de vida. No princípio do século, uma das reivindicações operárias era o pão. É evidente que hoje nenhuma reivindicação operária pedirá pão. Pedem outras coisas porque o problema do pão deixou de se pôr. Portanto, tem de se concluir que no passado isto foi avançando, melhor ou pior, com passos para trás, com passos para a frente, mas foi de facto avançando e a partir daqui pode-se concluir que isto continuará a melhorar. O passado não prova nada acerca do futuro, porque pode cair um raio e acabar tudo. Mas, nesse sentido, eu sou um pessimista optimista.
Hoje, há mais livros do que havia há 50 anos atrás, hoje, há mais gente que pega num livro...
Sem dúvida.
Numa entrevista que deu em tempos considerou que há vários tipos de escritores: os que escrevem vários livros e os que escrevem sempre o mesmo e enquadra-se nos que escrevem sempre o mesmo. Porque é que diz que escreve sempre o mesmo?
Escrevo sempre o mesmo, porque querendo eu dizer alguma coisa que não sei o que seja, quando chego à página 300 nunca a cheguei a dizer e sinto que não a disse. Nessa altura, volto atrás e recomeço um outro livro para ver se consigo dizer essa mesma coisa mas de outra maneira, visto que a primeira maneira não serviu.
É nesse sentido que diz que "o indivíduo nunca diz o que queria dizer".
Exacto. Quando percebo que não disse mesmo, escrevo fim e passo para outro caminho a tentar encontrar o que não encontrei dito daquela maneira que, no fundo, é a mesma coisa sempre... Deixará de ser a mesma coisa sempre no dia em que eu a escrever, em que a disser. Como ainda não a disse...
Também disse numa entrevista que "conhece melhor as mulheres do que os homens. Com os homens praticamente não se conversa. Os homens, ou por pudor ou seja o que for, não falam de si mesmos". Isto parece estranho por ser um escritor e por ter essa sensibilidade para a escrita.
É evidente que isso é pessoal. É a minha experiência pessoal que me diz que é mais fácil conversar com uma mulher do que com um homem. Os homens são muito mais reservados. Têm muito mais pudor, o que parece paradoxal. Suponho que nunca tive uma conversa íntima com um homem e tive numerosas conversas que posso chamar íntimas com mulheres, isto em termos de pura relação amistosa.
Por isso, refere que os homens têm um porteiro na alma que impede a intimidade.
Sim. É nesse sentido que digo isso. Alias, segundo Freud, esse porteiro não está só nos homens, está também nas mulheres.
Mas isso também não deixa de ser curioso porque o século XX, em certo sentido, é o século das mulheres. Começou-se o século com as mulheres praticamente fora de tudo e acaba-se o século com as mulheres dentro de tudo...
Mais em Portugal do que noutros sítios. No domínio profissional, as mulheres estão em tudo mais do que em França, na maior parte das profissões.
Sobretudo, no domínio do ensino.
Aí é fatal. Mas na medicina também. Nos hospitais é difícil encontrar um médico.
Mas nos meus tempos da Faculdade de Letras havia 800 alunos e digamos que, já nessa altura, haveria 70 alunos e o resto eram mulheres.
Mas depois não acabavam o curso.
Depois, casavam, acho eu.
É uma boa maneira de "acabar", com certeza... mas hoje já não é tanto assim. Hoje, casam e acabam.
Mas a esse respeito é a experiência pessoal que fala. Nunca tive uma conversa íntima com um homem.
O que desperta mais interesse prende-se com a escrita. Porque o seu raciocínio poderia levar a dizer que as mulheres teriam mais facilidade em escrever romances, em ter uma escrita mais intimista. E, no seu caso, não parece ser assim...
Em todo o caso, há algumas mulheres na literatura que não devem nada aos homens. Muito pelo contrário. Sobretudo no século XX, mas já era assim no século XIX.
Não quer dizer alguns nomes?
A Virgínia Wolf, por exemplo, a Katherine Mansfield. Digamos que, do ponto de vista de influências, de descoberta da literatura em prosa, a figura mais importante, acompanhada por Tchekhov, foi a de Katherine Mansfield, no The Garden Party. Aí eu descobri uma outra literatura. Já estava farto de ler livros, bem entendido, mas era outra coisa.
Fernando Pessoa teve em si uma grande influência.
Sim, claro. Continua a ser uma influência, mas fala-se tanto do Pessoa que hoje tenho uma reacção que me leva a ter pouca paciência para o ler. Mas continua a ser a grande influência, eu sei que ele está lá.
A literatura portuguesa tem tido grandes avanços.
Sim, nomeadamente depois do 25 de Abril. E aí com a invasão que já vinha de trás, mas com a invasão precisamente das mulheres.
Começaram a aparecer muitas mulheres a escrever...
E batendo os homens em qualidade e quantidade. Embora isso já começasse a vir de trás. Nalguns casos ficaram no caminho. Irene Lisboa, uma das maiores escritoras portuguesas de sempre, continua a não ser lida. De vez em quando publicam-se os livros e as pessoas não lêem... Não se percebe bem porquê.














Augusto Abelaira






"Escrevo para um leitor que invento, não me preocupa o número de leitores”
"Ao falar da mediocridade sem esperança em que caiu o 25 de Abril (os seus capitães eram dignos de melhor sorte), não continuo a fazer magia, a tentar enganar a História (e com ela os leitores), a tentar que ela desminta o que, sombriamente, me parece inevitável, resultado fatal da nossa incapacidade de cidadãos, resultado fatal da inconsciência dos nossos poliítico (...)"