O que Cardoso Pires pensa da... Ditadura
"- E no
entanto, hoje, já há quem defenda a relativa benevolência do salazarismo e o
considere uma ditadura à nossa imagem, uma ditadura de brandos costumes...
- Há mesmo quem vá
mais longe, há mesmo quem afirme despudoradamente que o sistema salazarista
nunca foi uma ditadura. Ouvi isso aqui há tempos num debate da TV pela boca de
Franco Nogueira, ex-ministro do falecido Estado Novo, e só me admira que
ninguém se tivesse lembrado de lhe perguntar por que razão é que, nesse caso, o
regime de Salazar se designava oficialmente Ditadura Nacional... Eu não duvido
que a Dura Pax da tal branda ditadura o que pretendia era instituir uma
atmosfera de medo tolerado e tolerante. Pacto de convívio entre opressores e
oprimidos, o sonho de qualquer totalitarismo é sempre esse. E por essa razão é
que Salazar pretendia radicar, por exemplo, a Censura como um hábito social,
uma prática familiar de dissuasão, por assim dizer. Chamava-lhe resignadamente
«um mal necessário», como toda a gente sabe. Simplesmente, a Censura, além de
hipocrisia do Poder, era uma máquina de corrupção e de terrorismo cultural em
ligação directa com a Administração e com a polícia política. Foi para denunciar
a práxis e os mecanismos que a definiam que eu escrevi a Técnica do Golpe de
Censura *. Publiquei esse ensaio em Londres, é certo, mas publiquei-o. E isso
aliviou-me a consciência a um ponto que nem pode imaginar. Em Paris, a revista
«Esprit» editou-o em tradução integral e, em Madrid, «Cuadernos para El
Dialogo» reproduziu-o em grande parte.
- É nesse ensaio que denuncia a destruição da Sociedade de
Escritores...
- É uma análise onde, entre outras coisas, falo do terror
censório e do terror armado. Descrevo o assalto e a destruição da Sociedade de
Escritores por comandos da ultradireita. A PIDE e a Censura estavam
estreitamente comprometidas na operação, era evidente, e, como não podia deixar
de ser, os activistas da organização Jovem Portugal. Depois do 25 de Abril a
Comissão da Extinção da PIDE e da Legião Portuguesa forneceu-me provas
documentais dessa operação de terrorismo. Alguns funcionários da Polícia
Judiciária estavam envolvidos também nela e havia até um escritor, Amândio
César, que teve um papel da mais alta responsabilidade nos acontecimentos. De
resto, um assalto em grande estilo, como aquele, contra a resistência cultural
à guerra colonialista pressupunha, como é evidente, uma conjugação de forças
repressivas a vários níveis para explorar todos os argumentos psicológicos,
patrióticos e segregacionistas que legitimassem a ira nacional. E o rastilho
pegou imediatamente. A caça às bruxas declarou-se sem hesitações. Prisão de
escritores, destruição duma livraria na Rua D. Estefânia, provocações de rua,
entrevistas na imprensa e na televisão a soldados estropiados em combate,
individualidades pressurosas em condenar publicamente os intelectuais, esses
traidores da guerra colonial... sei lá. Ainda me estou a lembrar do locutor
Mensurado a dirigir com subserviente comoção uma manifestação televisiva contra
os escritores. Pior, pior ainda! Entre os carrascos dos escritores portugueses
figurou um poeta angolano que depois da Independência foi recuperado como
patriota e figura nacional. O assalto à Sociedade de Escritores sofreu destas
alianças bizantinas...
- Depois dessa crista de terror, a pressão abrandou um
pouco...
- ... como era regra da «Ditadura dos Brandos Costumes». Os
paternalismos ferozes estabelecem o seu equilíbrio através dos ciclos de
agressão de que fala Lorenz. Só que, desta vez, o Governo, além de abrandar,
resolveu aproveitar-se do medo que ficou a pairar. O «Diário de Notícias» e o
Secretariado Nacional da Informação passaram a acenar com prémios oficiais a
certos escritores independentes e diga-se de passagem que alcançaram algum
resultado. Nessa onda de aliciação recordo-me da atitude exemplar de António
Ramos Rosa que, doente e em dificuldades económicas, teve a coragem de recusar
o Prémio de Poesia que o fascismo lhe quis atribuir.
- O marcelismo anunciou-se como querendo ter uma outra
relação com a cultura...
- O consulado de Marcelo Caetano procurava adaptar a
subdoutrina do Salazar a um país desautorizado por fora e por dentro. A própria
Polícia Política começava a ver na guerra do Ultramar um imenso cemitério onde
jaziam alguns dos seus agentes mais sanguinários, os célebres Flechas. Por
outro lado, o alto funcionalismo oficial sentia o futuro comprometido, jogava
entre o poder político e a protecção do grande capital. Dou-lhe um exemplo
passado comigo no Fundão, meses antes do 25 de Abril. Houve um almoço, era a
festa de aniversário do «Jornal do Fundão» e, inesperadamente, vem um aviso do
governador civil de Castelo Branco a proibir-me de falar. Porquê, por eu estar
na mesa da presidência? Não sei. Mas, pronto, proibia. Eu, sinceramente, não
tinha a menor intenção de dizer fosse o que fosse, mas, perante a intimação,
não tive outro remédio senão tomar a palavra e denunciar a proibição que
acabava de me ser comunicada. Apareceu imediatamente a PIDE que cercou o
restaurante e espancou brutalmente um criado. E pronto, a festa ficou por aí.
Saímos por entre duas filas de pides que, para surpresa minha, não me deram voz
de prisão, limitando-se a deitar-me olhares provocadores. Porquê? Ah bom,
porque nessa altura já o horizonte da Ditadura estava pouco promissor. O tal
governador civil era ou tinha sido veterinário dum grande lavrador da região
que o dissuadira de levar ao fim a operação policial, devido ao telefonema de
um amigo que se encontrava no almoço. O obediente governador chamava-se
Simplício Barreto Magro, um nome destes nunca mais se esquece. Logo a abrir o
ensaio Técnica do Golpe de Censura * deixo-lhe uma referência elucidativa:
«Dedico estas reflexões», digo eu lá, «a um cidadão sem letras, Simplício
Barreto Magro, veterinário e governador fascista, o qual, proibindo-me, me
obrigou a falar de liberdade.» É que aquela reunião foi realmente uma afirmação
de liberdade em homenagem a um resistente como António Paulouro e ao jornal que
ele dirigia.
* Incluído em E agora José?, Moraes Editores, Lisboa, 1977.
Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela,
1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 38 - 41
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