AUGUSTO ABELAIRA
Entrevista
de José Carlos Abrantes e Dora Santos
Homem de convicções, de militância cívica,
foi professor, jornalista e escritor.
Sustenta que hoje já não se escrevem maus romances, embora já não existam
também romances que nos surpreendam.
NOESIS: Ainda recorda
hoje professores?
AUGUSTO ABELAIRA: Sim, não muitos. Quer dizer, julgo recordar mais professores,
mesmo até os que não eram brilhantes, do que os alunos de hoje. No meu tempo,
sabíamos o nome de todos os professores. Verifico que os alunos actuais, mesmo
os das faculdades, não sabem o nome de todos os seus professores, o que é
completamente estranho. Durante estes últimos 50 anos qualquer coisa se passou
do ponto de vista do desinteresse. Apesar de tudo, as pessoas têm um nome...
Passar um ano inteiro com uma pessoa, que debita umas coisas (mal ou bem), e
não se saber o nome é uma coisa esquisita.
Como sabe isso?
Porque tenho perguntado a jovens, a filhos e netos de amigos meus.
É, de facto, uma despersonalização estranha...
É curioso. No meu tempo, sabíamos... e não vem só do meu tempo, que não era
melhor, nem pior...
Lembro-me do meu professor de Português do 1º ano, Pires de Lima, que, aliás,
era um bom professor. E ele dizia, "cada ano que passa, vocês são mais
burros". Depois, quando fui professor, verifiquei que alguns colegas
diziam o mesmo. É claro que, com este critério, se, de ano para ano, cada vez
se fosse mais burro, onde é que os actuais alunos estariam? Em que grau de
"burrice" estariam? Mas eu tive alguns bons professores e personalidades
que me influenciaram. Como professores, tive dois excepcionais: Vieria de
Almeida e Edmundo Curvelo.
Ainda os recorda, porquê?
Eram sabedores e sabiam mais do que o que transmitiam. Eram do género do
professor que sabe mais do que aquilo que ensina, bem entendido. E com vistas
largas. Falavam de tudo. Não falavam apenas da matéria. Ou então, a matéria
permitia que eles falassem de muitas outras coisas. Eram verdadeiramente
professores que estimulavam a cultura do aluno. Tive um outro que também era
bastante bom, no liceu. No liceu, não! No colégio, porque ele tinha sido
proibido de ser professor da Universidade do Porto. Era o Newton de Macedo.
Houve uma outra personalidade que me marcou muito, embora as minhas relações
fossem más com o indivíduo em questão. Mas foi talvez o homem que mais
influência teve em mim e para castigo dele ele nunca o soube. Eu nunca lho
disse, nunca lhe dei esse rebuçado. Era o António Sérgio, que, por umas
desconfianças a meu respeito, me via com um pé atrás.
Por razões ideológicas?
Sim, por razões políticas. Por acaso, até se enganava comigo...
Mas isso não impediu de ter essa grande admiração por ele.
Sim, não impediu. As minhas relações com ele acabaram por não ser brilhantes e,
no entanto, foi um dos primeiros pensadores que li quando ainda era miúdo. O
meu pai era assinante da Seara Nova e eu li os ensaios dele. Portanto, foi
talvez a grande figura que na minha adolescência se impôs.
É uma figura que ainda hoje tem prestígio.
Hoje, acho que já ninguém o lê.
Enfim, é mais uma referência para alguns pensadores...
Os pensadores que existem, de um modo geral, até não são muito afectos a ele, o
que não tem importância absolutamente nenhuma. O papel do Sérgio não era que as
pessoas concordassem com ele, embora ele desejasse que concordassem. Até porque
o espírito aberto dele era bastante teórico, bem entendido, mas o que importa
aqui era a teoria. Ele gostava de ter razão.
Na sua família, também
houve uma influência forte.
O meu pai e a biblioteca do meu pai, naturalmente... se tenho nascido num meio
que não fosse esse, com outro pai e com outra biblioteca, naturalmente teria
sido diferente.
Nessa altura, não era muito vulgar...
Havia uma pequena burguesia ilustrada, apesar de tudo. Digo isto porque muitos
colegas do liceu tinham pais semelhantes.
O liceu tinha pouca gente, logo...
Pois, o liceu, nessa altura, era o Rodrigues de Freitas. O meu liceu começou
por ser no Porto, mas acabei em Lisboa. Os meus primeiros anos de escola são na
aldeia de Ançã, onde as influências livrescas dos pais eram pequenas. Mas,
quando vou para a 4ª classe, já no Porto, entre os meus colegas, havia
indivíduos interessados em leituras e reflectindo uma casa paterna com
interesses culturais. Era o período da Guerra de Espanha e da outra guerra. A
política, nessa altura, também era estimulante de cultura.
Havia um clima político de opressão e portanto havia necessidades...
Havia sempre nas turmas filhos de pais, filhos de famílias ilustradas. Também não
havia televisão, de modo que ao jantar conversava-se. O que é que faziam senão
conversar, pelo menos, essas famílias cultivadas? E o que é que se havia de
fazer senão ler? Como preencher uma noite inteira, depois do jantar, até à
meia-noite, para além da hora e meia dedicada aos estudos? O que é que um
indivíduo havia de fazer? Conversar e também ler alguma coisa.
Depois de ter feito o curso, tornou-se professor.
Fiz o curso em Lisboa.
E tornou-se professor imediatamente?
Sim. Há coisas que parecem paradoxais, mas não são. Não me foi permitido ser
professor no ensino particular e foi-me permitido ser professor do ensino
oficial.
Deveria ter sido ao contrário.
Ainda guardo, em qualquer sítio, o papel da PIDE a recusar isso. O Ministério
pedia um parecer para professor do ensino particular. Aparentemente, para
professor do ensino oficial não pedia. Claro que também é fácil de pensar que
um professor no ensino oficial estava muito mais controlado do que um do ensino
particular.
Portanto, quando iniciou a sua actividade como professor já era uma pessoa
que se tinha manifestado politicamente ao ponto de...
Sim... ao ponto da polícia rejeitar. Havia essencialmente assinaturas de
papéis, as famosas assinaturas...
E, como professor, teve uma actividade interessante?
Sim, gostei bastante de ser professor. Pelo menos da disciplina de filosofia e
também da de organização política, mas aí, o que eu fazia era falar-lhes de
pintura, de música, etc. Depois, mandava-lhes ler o manual para os exames. Aí,
o reitor, que era um indivíduo muito conservador e do regime, senão não seria
reitor do Liceu D. João de Castro, de facto era complacente. Simpatizou comigo,
talvez porque eu nunca faltava. Ele embirrava com os professores que faltavam.
Eu nunca faltava, de modo que talvez eu beneficiasse disso. Tinham de lhe
chegar aos ouvidos certas coisas mas ele era bastante complacente e, de facto,
nunca me incomodou. Mesmo uma ou outra coisa que nas aulas sempre se dizia,
porque não era fácil passar “moeda falsa” nas aulas, mas alguma sempre se podia
passar. Quando se entra no domínio da cultura, é evidente que muita coisa pode
ser dita nas entrelinhas.
Nesse período já tinha começado a escrever?
Sim. Comecei a escrever bem novo.
Depois, começa a publicar...
A publicação é posterior a ser professor.
O primeiro livro que
publica é nos anos 50 ou 60?
Acho que foi em 59.
Foi "A cidade das flores"?
Sim.
Nessa altura, ainda era professor?
Não. Nessa altura, já não era professor.
E tinha outra actividade?
Fazia umas traduções. Eu saí do ensino por uma determinada situação. Eu era
professor eventual, não tinha feito o estágio. Nessa altura, o estágio era
feito em Coimbra.
Era o único sítio onde era possível?
Sim. Depois, passou também para Lisboa, para o Liceu Pedro Nunes. Mas, na minha
época, era feito em Coimbra e ir para Coimbra era um bocado complicado, vivendo
em Lisboa. Embora, sob certos aspectos, fosse mais fácil... eu sou de ao pé de
Coimbra. Mas mesmo assim era complicado e nunca o fiz. Portanto, eu era professor
eventual e tinha de concorrer todos os anos. E há um ano em que, em vez de
concorrer para o D. João de Castro, como deveria ter feito, não quis concorrer
para liceu nenhum. Ia para onde me mandassem. E fui parar ao Gil Vicente e o
reitor quis que eu desse umas aulas de ciências naturais ao primeiro ano. Eu
objectei que em Ciências Naturais era um incompetente. E ele disse que eu era
suficientemente inteligente para ler o compêndio na véspera. Eu disse:
"Não quero fazer inimigos das ciências naturais para todo o sempre".
E, portanto, aí acabou a minha actividade de professor. Desde que se recusasse
a dar uma aula, uma disciplina ou a aceitar uma incumbência, só daí a 3 anos é
que se poderia regressar ao ensino.
Isto é uma história que se passa antes do 25 de Abril. Eu só gostava de ter a
certeza que hoje não se poderia passar alguma coisa de semelhante. Já não com
reitores, visto que já não há reitores, mas com as comissões directivas que
existem.
Acha que ainda poderia acontecer?
Acho que sim, por uma ou outra coisa que às vezes vou ouvindo.
Como é que uma pessoa se torna escritor?
Mas eu tive sempre outra actividade para além de ser escritor. Fui jornalista
ou fiz traduções.
Sempre teve outras actividades?
Quase sempre. Também conheci uns períodos de desemprego.
Teve uma vida interessante, porque foi jornalista, foi director de
revistas... foi director de programas da RTP.
Fui. Quer dizer, na prática, fui, na realidade, era ajudante do director, só
que não havia director.
E isso em que período?
Foi em 77/78.
E já nessa altura a televisão era um problema como é hoje?
Exactamente. Alias, eu demiti-me apesar dos convites para assumir mesmo a
direcção de programas. Mas demiti-me porque cheguei à conclusão que não valia a
pena. O Leonardo Coimbra sugeriu uma vez que se solucionava o problema da
Universidade de Coimbra fechando-a e abrindo-a três meses depois... Eu,
pessoalmente, cheguei a conclusão semelhante a propósito da RTP, embora as
outras televisões sejam talvez piores do que a RTP. Mas percebi que a RTP não
tinha emenda e eu senti-me sem paciência. É preciso uns murros na mesa e
atitudes naturalmente ditatoriais para as quais não nasci.
Tinha a responsabilidade da programação ou só da parte cultural?
Só da parte cultural, não da parte noticiosa.
Conseguia-se fazer alguma coisa?
Pois... conseguia-se fazer algumas coisas, mas mal. Por exemplo, tentar manter
viva semanalmente uma peça de teatro portuguesa, por exemplo, coisa que o
fascismo tinha feito, bem ou mal. E, depois, nunca mais foi possível fazer. Certos
programas de história, para os quais convidei o Oliveira Marques, et c. Agora,
é evidente que foram feitos muitos programas, mas quase sempre fracos.
Mas era por ser televisão ou por não haver, na altura, sabedoria para fazer
isso?
Não sei... Não basta saber de um assunto para se fazer um programa de televisão
bem feito. É preciso anos de experiência, etc, etc. E, aliás, a televisão
desistiu de fazer coisas desse género.
Como jornalista, dirigiu a Vida Mundial, a Seara Nova, que é uma revista
que teve uma grande importância...
Ela teve sobretudo uma grande importância nos tempos do Sérgio e do Raúl
Proença. Teve uma grande importância quanto à riqueza das ideias. No tempo em
que eu estive à frente da Seara Nova já não tinha, em minha opinião, a mesma
importância.
E isso foi antes do 25
de Abril?
Começou no ano da queda de Salazar. Talvez em 69, ainda com Marcelo. A Seara
Nova era uma das raras publicações de resistência ao fascismo.
Mas define também como sua profissão ser jornalista ou o ser jornalista
foi...
Eu sou nomeado director da Seara Nova porque sou um nome menos queimado do que
os outros poderiam ser perante a censura. Era preciso obter autorização da
censura para se ser director da Seara Nova. E, dentre as pessoas que poderiam
ser directoras da Seara Nova, apesar de tudo, o meu nome era o menos queimado,
era aquele que menos problemas poderia levantar à censura, visto que a censura
tinha de aceitar alguém. A censura também estava interessada em que existisse
uma revista para poder dizer que havia liberdade de escrever.
Depois, ainda colaborou muito no "Jornal".
No Jornal, colaborei anos.
A Vida Mundial foi depois do 25 de Abril...
Sim, a Vida Mundial foi depois do 25 de Abril. Mas antes colaborei no Século,
como faz hoje o Prado Coelho. Eu também escrevia numa crónica diária, na
primeira página. Era um imitar do Le Monde. O Le Monde tinha o Escarpit, que
fazia umas crónicas admiráveis, que vinham na primeira página. E foi inspirado
por essas crónicas que o director do Século me pediu que colaborasse.
Deve ser muito difícil, para um escritor, escrever um texto tão pequeno.
É. Mas, depois, ganha-se o hábito. Porém, não é sempre interessante.
Essas crónicas existiram desde o dia 1 de Janeiro de 74 até ao dia 25 de Abril
de 74. A última crónica que eu escrevi, nem sei o que era. Perdeu-se. O jornal
do dia 25 de Abril saiu logo às 5 da manhã com outras preocupações. Tenho
vagamente a ideia de que era sobre o Parque do Gerês. Mas, enfim... Iam fazer
uma estrada.
Hoje, também se põe esse problema no Montesinho. Também andam a dizer que
querem lá fazer estrada.
Pois... era o começo das preocupações ecológicas que, nessa altura, ainda
estavam a nascer. São bastante posteriores à guerra. A partir do 25 de Abril,
decidem chamar-me para director da Vida Mundial, que pertencia ao Século. Nessa
altura, vou para director da Vida Mundial de onde saí como consequência do 25
de Novembro.
A Vida Mundial ainda
teve um período grande.
Sim, depois de eu sair ainda durou mais um ou dois anos. Aliás, como o Século.
Qual a sensação que hoje tem. Toda a riqueza da sua escrita... os jovens,
hoje, estão a aprendê-la na escola? Tem alguma ideia sobre isso? Costuma ser
chamado pelas escolas? Acha que os jovens hoje lêem ou passam mais o tempo a
ver televisão?
Tenho um neto que já se encontra no 7ª ano. Mas depois há uma lacuna em eu
contactar com jovens do liceu. Com estudantes da faculdade ainda contacto. De
modo que eu não sei bem o que se passa e os conhecimentos que tenho, dos
liceus, da periferia de Lisboa, são terríveis.
Em que sentido?
De desinteresse completo, mas óbvio, da maior parte desses alunos. Alguns mal
sabem Português. Vêm de Cabo Verde e são atirados sem saber ainda português
para ficar em aulas em que mal aprendem. Por outro lado, são alunos com pais
que passam a vida fora de casa a trabalhar e fecham a porta de casa. Portanto,
são alunos que andam na rua. Depois, é a violência. Não tenho propriamente
informações que me tranquilizem. Embora a versão que o meu neto me dê seja
razoável. Mas já é de um liceu mais do centro de Lisboa.
Seria possível pôr os alunos a ler mais...
Alguns professores queixam-se que os alunos não sabem ler, que não percebem o
que leram. Havia uma coisa que no meu tempo se fazia, logo na primeira classe.
O professor mandava-nos ler um texto e depois dizia: "Resuma". E a
gente tinha de resumir e para resumir é preciso ter percebido. Não sei se hoje
se faz isso ou outras coisas parecidas.
Hoje, os professores de liceu queixam-se dos alunos que vêm da escola primária
e os professores universitários queixam-se dos alunos que vêm do secundário.
E os professores da primária também já se queixam que os alunos não tiveram
educação pré-escolar.
Pois. Lemos no jornal o que dizem às vezes alguns professores universitários
acerca dos alunos não saberem ler. Já não falo do que dizem os professores de
Matemática. Um professor de Braga, ainda não há muito tempo, dizia que lhe
apareciam alunos que não sabiam tirar a raiz quadrada. Mas eu não tenho
opinião. Vejo que em França as coisas também são complicadas.
As coisas também não estão a evoluir bem...
A escola é hoje um problema em todo o lado. Pelo menos em alguns lados,
conforme me chega. O que é que os Ministérios podem fazer? Não sei... é muito
complicado.
Sobretudo, porque é uma situação muito diferente daquela que o Augusto
Abelaria viveu e que eu também, em certa medida, vivi. Os problemas nas escolas
eram muito diferentes porque, numa turma de 30 alunos, dois ou três é que
seguiam estudos e os outros ficavam a trabalhar no campo ou em ofícios. Hoje,
está toda a gente na escola.
É evidente que a democratização do ensino trouxe esses problemas, que têm de
ser resolvidos.
Hoje, temos alunos nas universidades que vêm de todos os meios, de todas as
culturas.
E isso é uma coisa boa, mas cria problemas de referência, acho.
Quando escreveu a
"A Cidade das Flores", situou a acção em Florença. Eu até estive a
reler o livro e a reparar no facto de escrever sobre uma cidade quando nunca lá
tinha estado.
Pois, mas o problema é que as pessoas pensavam que eu tinha estado.
Mas como é que é possível?
Então, consultando o Guide Blue e outras coisas assim. De modo que, quando fui
pela primeira vez a Florença, depois de ter escrito “A Cidade das Flores”, fui
visitar os sítios que tinha descrito.
Isso é uma coisa fantástica. A capacidade de criar que um cineasta, que um
escritor tem.
Sim, é divertido. Mas eu não fazia grandes descrições. As pessoas também são um
pouco iludidas pelo aparecimento de alguns nomes...mas, efectivamente, o
cenário, a descrição não estão lá.
Os professores, por exemplo, teriam ou não um papel em estimular essa
criatividade?
Eu acho que sim, dentro de certos limites, como é óbvio. Acho que um bom
professor pode desenvolver, nos alunos que saibam português, não nos outros que
nem português sabem, a atenção para certas coisas. Também não sei como é que
isso se faria, também nunca fui professor de português, mas lembro-me que o meu
professor da 1ª classe nos dava alguns conselhos (uns eram bons, outros eram
maus), mas nós tomávamos atenção.
Como por exemplo?
Já não me lembro. As coisas perdem-se. Mas lembro-me que tomava atenção a
certas coisas. Não direi, pura e simplesmente, evitar os "ques" mas o
evitar os "ques" também tem alguma importância. Não é por aí que o
gato vai às filhoses, bem entendido, mas...
O episódio de Florença é único na sua escrita? Ou seja, descreveu uma coisa
que não conhecia nesse livro ou isso também lhe aconteceu noutros livros? E aí
foi uma artimanha, por causa da censura?
Sim, aí foi uma artimanha. Mas há um outro livro em que também foi uma
artimanha. Esse outro livro passa-se em Portugal durante as vésperas do 5 de
Outubro. Também descrevo um ambiente que não vivi e para o qual tive de andar a
folhear alguns livros, para dar um certo ambiente.
A criação literária é algo que seduz...
É tudo uma questão de paciência. Escrever um romance é uma questão de
paciência. Escrever contos é preciso muito talento. O conto é uma coisa muito
séria. Mas escrever um romance é um problema de paciência e de um indivíduo
dispor de anos para depois cortar e ir fazendo, ir trabalhando... é uma questão
de paciência. Não digo que com esta paciência se possa escrever os Irmãos
Karamasov, bem entendido. Mas estou convencido que se escreve um romance
razoável. Aliás, hoje, já não há romances maus. Mas hoje também não há romances
muito bons, como havia no tempo de Balzac ou do Thomas Mann.
Será por isso que prefere ler divulgação científica a romances modernos.
Sim, acho muito mais interessante.
Mas porque é que já não
lê romances modernos, acha que já não têm qualidade?
Têm qualidade. Até porque eu defendo a tese de que hoje já não se escreve mal.
Todavia, aparentemente está tudo mais ou menos dito e redito. De modo que,
aquele golpe de génio, a sensação de, perante uma página, se ter aquela emoção
e se poder dizer "aqui está uma coisa nova, eu saio desta página diferente
do que entrei para a página" já não acontece. E, apesar de tudo, acontecia
quando se lia Thomas Mann e outros. Mas também pode ter a ver com a minha
velhice. Hoje, encontrarei alguns romances com prazer, são bons romances. Mas,
verdadeiramente, já não sou surpreendido por eles. É evidente que, dizia um
autor francês, só há 30 e tal temas romanescos e já estão todos na tragédia
grega. Mas, até há não muito tempo, foi-se moendo aquela farinha e foi dando
algum resultado. Aliás, eu costumo citar, a propósito disto, uma frase do
Pascal, que me parece justa. Ele dizia que a bola é sempre a mesma o que é
diferente é a maneira de se bater na bola. E isso é que faz o escritor. É a
maneira como bate na bola. Mas, em resumo, de facto, hoje, entusiasmo-me muito
mais a ler livros de divulgação científica. Pode ser defeito meu. Encontro mais
imaginação na divulgação científica do que nos romances, porque já mais ou
menos sabemos o que se vai passar a seguir. Não há muitas coisas mesmo para se
passar. Não há! Até temos de ficar espantados como é que o romance propriamente
dito durou, admitindo que começou com o Cervantes, três séculos a moer a mesma
farinha. Já foi muito!
Acabou por dizer que hoje não se escrevem maus romances.
Hoje, há uma fórmula.
Também se expandiu mais essa técnica da escrita.
Até se ensina.
E acha mal que haja ateliers de escrita criativa?
Não, acho bem.
Actualmente, também há outras formas artísticas, nomeadamente o cinema e já
não digo a televisão, pois pode ser mais discutível.
Sim, o cinema é um rival da literatura. O que me parece é que o cinema, sobre
certos aspectos, está um bocado esgotado, no sentido de já não haver grandes
cineastas, que ainda eram vivos há 15 anos. Não é preciso ir ao expressionismo
alemão.
Em termos de sociedade, acha que vamos no bom caminho?
Não lhe sei responder. Apesar de tudo, penso sempre numa coisa, embora isso não
demonstre nada. Apesar de tudo, se considerarmos a vida dos homens no tempo da
Assíria ou no tempo da Idade Média, temos de admitir que houve, pelo menos no
mundo ocidental, um certo progresso, no nível de vida. No princípio do século,
uma das reivindicações operárias era o pão. É evidente que hoje nenhuma
reivindicação operária pedirá pão. Pedem outras coisas porque o problema do pão
deixou de se pôr. Portanto, tem de se concluir que no passado isto foi
avançando, melhor ou pior, com passos para trás, com passos para a frente, mas
foi de facto avançando e a partir daqui pode-se concluir que isto continuará a
melhorar. O passado não prova nada acerca do futuro, porque pode cair um raio e
acabar tudo. Mas, nesse sentido, eu sou um pessimista optimista.
Hoje, há mais livros do que havia há 50 anos atrás, hoje, há mais gente que
pega num livro...
Sem dúvida.
Numa entrevista que deu
em tempos considerou que há vários tipos de escritores: os que escrevem vários
livros e os que escrevem sempre o mesmo e enquadra-se nos que escrevem sempre o
mesmo. Porque é que diz que escreve sempre o mesmo?
Escrevo sempre o mesmo, porque querendo eu dizer alguma coisa que não sei o que
seja, quando chego à página 300 nunca a cheguei a dizer e sinto que não a
disse. Nessa altura, volto atrás e recomeço um outro livro para ver se consigo
dizer essa mesma coisa mas de outra maneira, visto que a primeira maneira não
serviu.
É nesse sentido que diz que "o indivíduo nunca diz o que queria
dizer".
Exacto. Quando percebo que não disse mesmo, escrevo fim e passo para outro
caminho a tentar encontrar o que não encontrei dito daquela maneira que, no
fundo, é a mesma coisa sempre... Deixará de ser a mesma coisa sempre no dia em
que eu a escrever, em que a disser. Como ainda não a disse...
Também disse numa entrevista que "conhece melhor as mulheres do que os
homens. Com os homens praticamente não se conversa. Os homens, ou por pudor ou
seja o que for, não falam de si mesmos". Isto parece estranho por ser um
escritor e por ter essa sensibilidade para a escrita.
É evidente que isso é pessoal. É a minha experiência pessoal que me diz que é
mais fácil conversar com uma mulher do que com um homem. Os homens são muito
mais reservados. Têm muito mais pudor, o que parece paradoxal. Suponho que
nunca tive uma conversa íntima com um homem e tive numerosas conversas que
posso chamar íntimas com mulheres, isto em termos de pura relação amistosa.
Por isso, refere que os homens têm um porteiro na alma que impede a
intimidade.
Sim. É nesse sentido que digo isso. Alias, segundo Freud, esse porteiro não
está só nos homens, está também nas mulheres.
Mas isso também não deixa de ser curioso porque o século XX, em certo
sentido, é o século das mulheres. Começou-se o século com as mulheres
praticamente fora de tudo e acaba-se o século com as mulheres dentro de tudo...
Mais em Portugal do que noutros sítios. No domínio profissional, as mulheres
estão em tudo mais do que em França, na maior parte das profissões.
Sobretudo, no domínio do ensino.
Aí é fatal. Mas na medicina também. Nos hospitais é difícil encontrar um
médico.
Mas nos meus tempos da Faculdade de Letras havia 800 alunos e digamos que, já
nessa altura, haveria 70 alunos e o resto eram mulheres.
Mas depois não acabavam o curso.
Depois, casavam, acho eu.
É uma boa maneira de
"acabar", com certeza... mas hoje já não é tanto assim. Hoje, casam e
acabam.
Mas a esse respeito é a experiência pessoal que fala. Nunca tive uma conversa
íntima com um homem.
O que desperta mais interesse prende-se com a escrita. Porque o seu
raciocínio poderia levar a dizer que as mulheres teriam mais facilidade em
escrever romances, em ter uma escrita mais intimista. E, no seu caso, não
parece ser assim...
Em todo o caso, há algumas mulheres na literatura que não devem nada aos
homens. Muito pelo contrário. Sobretudo no século XX, mas já era assim no
século XIX.
Não quer dizer alguns nomes?
A Virgínia Wolf, por exemplo, a Katherine Mansfield. Digamos que, do ponto de
vista de influências, de descoberta da literatura em prosa, a figura mais
importante, acompanhada por Tchekhov, foi a de Katherine Mansfield, no The
Garden Party. Aí eu descobri uma outra literatura. Já estava farto de ler
livros, bem entendido, mas era outra coisa.
Fernando Pessoa teve em si uma grande influência.
Sim, claro. Continua a ser uma influência, mas fala-se tanto do Pessoa que hoje
tenho uma reacção que me leva a ter pouca paciência para o ler. Mas continua a
ser a grande influência, eu sei que ele está lá.
A literatura portuguesa tem tido grandes avanços.
Sim, nomeadamente depois do 25 de Abril. E aí com a invasão que já vinha de
trás, mas com a invasão precisamente das mulheres.
Começaram a aparecer muitas mulheres a escrever...
E batendo os homens em qualidade e quantidade. Embora isso já começasse a vir
de trás. Nalguns casos ficaram no caminho. Irene Lisboa, uma das maiores
escritoras portuguesas de sempre, continua a não ser lida. De vez em quando
publicam-se os livros e as pessoas não lêem... Não se percebe bem porquê.
Augusto Abelaira
"Escrevo para um leitor que invento, não me preocupa o número de leitores”
"Ao falar da mediocridade sem esperança em que caiu o 25 de Abril (os seus capitães eram dignos de melhor sorte), não continuo a fazer magia, a tentar enganar a História (e com ela os leitores), a tentar que ela desminta o que, sombriamente, me parece inevitável, resultado fatal da nossa incapacidade de cidadãos, resultado fatal da inconsciência dos nossos poliítico (...)"